Por Rosa Estrada
Tenho pouco
menos de três décadas de existência, por conta disso não tenho uma memória
muito extensa sobre a representação d@s negr@s em novelas. Porém, desde muito
cedo, algumas cenas transmitidas pela tevê me marcaram profundamente. Por
exemplo, quando passou a versão mexicana da novela Carrossel pela primeira vez, eu era muito pequena, mas lembro muito
bem de como o cordato e passivo Cirilo era maltratado pela rica e mimada Maria
Joaquina. A única cena de que me recordo com toda a nitidez é de quando Cirilo
adquiriu uma pomada que, acreditava ele, tinha o poder de deixá-lo branco e
mais apresentável para Maria Joaquina. Uma representação segundo a qual tudo o
que @s negr@s querem é ser aceit@s pelos brancos.
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Maria Ceiça |
Fui
crescendo e verificando o quanto as novelas continuaram na sua representação
d@s negr@s de maneira desrespeitosa: algumas de modo mais explícito, outras de
forma mais escamoteada. Eu tinha uns onze anos quando a Vênus platinada
transmitiu o folhetim Por Amor. Na
trama, a personagem de Maria Ceiça (Márcia, foto) foi abandonada grávida pelo marido
(Wilson), interpretado por Paulo César Grande, porque ele não desejava ter um
filho negro e não fazia a menor questão de esconder isso. Contudo, o rapaz
tentou se reaproximar ao descobrir que a filha nascera loira de olhos azuis,
como ele. De início, Márcia dispensou o ex-marido, com toda a razão, porque
estava muito claro para ela que Wilson havia mudado de ideia apenas porque sua
filha não era negra. Porém, com o tempo Márcia foi cedendo e, no fim, ela e
Wilson terminaram juntos e felizes para sempre, e o encaminhamento da trama deu
a atender que o personagem de Paulo César Grande havia se redimido. Mas é muito
fácil dizer que se redimiu do seu racismo, desde que sua filha com uma mulher
negra não nasça com a pele escura e os cabelos crespos, néam...
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Uma memória
mais recente que eu tenho é da novela Da
Cor do Pecado. Além do título horrendo, a trama também apresenta demonstrações
gritantes de racismo. A estória de amor entre Preta (Taís Araújo) e Paco
(Reynaldo Gianechini) não é bem vista pela mãe da moça, Lita (Solange Couto),
pelo simples fato de Paco ser branco. Nesse sentido, a novela apresenta um
discurso segundo o qual o racismo atualmente é algo que parte dos próprios negros,
ignorando um histórico de exploração e uma cultura que ainda ataca
cotidianamente a autoestima de toda uma etnia. Essa novela teve uma cena que
beirou o nonsense, na qual Apolo (Gianechini) e Ulisses (Leonardo Brício)
chegam a um bar em São Luís do Maranhão e são atacados por um grupo de nativos,
simplesmente por serem turistas oriundos “do Sul”. Quer dizer, nem o mínimo de
educação e civilidade os nordestinos parecem ter, segundo o autor da novela.
Viver a Vida foi a primeira novela
global em horário nobre cuja protagonista era negra, novamente interpretada por
Taís Araújo. A Helena de Taís Araújo era rica e bem-sucedida, mas tem uma irmã (Sandra,
de Aparecida Petrowki) que vai morar no morro com o namorado bandido, também
negro, invariavelmente. Eu acho impressionante que nessas novelas os
personagens negros parecem ter impulsos incontroláveis, que fatalmente os
acabam levando a assumir os comportamentos que uma cultura racista espera
deles. O namorado de Sandra, Bené (Marcelo Melo, ao lado, com Sandra), é negro, mora no morro e, seguindo o script,
é bandido. Só que eu não me lembro quais eram os crimes que ele cometia. Sério.
Eu só me lembro de Bené correndo para lá e pra cá, fugindo, e os personagens em
torno dele mencionando a todo tempo o quanto era alta a sua periculosidade,
apesar de as infrações do rapaz não terem ficado claras ao telespectador.
Recordo-me, obviamente, de como foi excessivamente trágico o seu fim,
brutalmente assassinado na frente da namorada.

Mas,
voltando à Helena, ela é negra, rica, bem-sucedida, mas acredito que foi um
truque do autor, pois em nenhum momento Taís Araújo protagonizou realmente essa
novela. Afinal, a personagem nem tinha uma história consistente, que desse
fôlego à trama. Nesse sentido, foi fácil para Alline Moraes ofuscar Taís Araújo
com sua Luciana, a moça que fica tetraplégica num acidente. Afinal, toda a
estória foi conduzida para emocionar o telespectador com a trajetória de
superação da mocinha branca, rica e amada pelos pais (em detrimento das irmãs,
um horror), deixando Helena totalmente apagada no folhetim. Viver a vida também teve uma cena
lamentável, em que a personagem de Taís Araújo se sente culpada pelo acidente
de Luciana, ajoelha-se na frente da mãe dela (Lília Cabral), pedindo perdão, e
recebe um tapa na cara. Eu considero essa cena completamente dispensável na
estória, pois o que aconteceu na novela, resumidamente, foi o seguinte: Helena
e Luciana eram modelos e estavam fazendo um trabalho juntas em alguma parte do
mundo. Aí Helena briga com Luciana e a manda ir para algum lugar de ônibus, ao
invés de permitir que a moça a acompanhasse em seu carro. Só que, no tal
ônibus, Luciana sofre o acidente que a deixa tetraplégica. Minha pergunta é:
como Helena ia adivinhar que Luciana ia sofrer o acidente? Assim, parece óbvio
que Helena não teve nenhuma culpa, certo? Errado, na opinião de Tereza, a fidalga
branca que é a mãe de Luciana. Então, Tereza vai à casa de Helena para jogar na
cara dela a responsabilidade pelo que aconteceu à sua filha. Se eu fosse
Helena, eu ia lamentar o acidente, mas deixar bem claro que eu não tenho bola
de cristal e que eu jamais poderia imaginar que tamanha desgraça iria acontecer
a Luciana. Depois, mandaria Tereza ir catar coquinho, e até chamaria a polícia
se fosse preciso. Mas não. Tudo o que Helena faz é assumir a subserviência
inerente à sua cor (na pena do autor da novela) e pedir perdão de joelhos. Em
troca, recebe um tapa na cara. Uma mensagem bem explícita de que @s negr@s que “não
sabem o seu lugar” acarretam desgraças aos brancos ricos, esses seres
angelicais de sangue azul que viviam muito felizes até que @s negr@s tiveram a
ousadia de ocupar espaços no mundo que não fossem os previamente dedicados a
eles (a cozinha, o prostíbulo, os presídios). Ver a cena aqui.
Recentemente,
Taís Araújo protagonizou outra novela, Cheias
de Charme. Porém, dentre as empreguetes, era a única negra e também a única
que falava errado e que não tinha nenhuma outra ambição na vida, a não ser
continuar vivendo sua vida de empreguete. A Rosário de Leandra Leal queria ser
cantora, a Cida de Isabelle Drummond planejava estudar jornalismo. Entretanto,
a Penha de Taís Araújo não tinha um sonho, não visava nenhuma outra perspectiva
na vida que não fosse continuar servindo a alguma patroa branca e “bondosa”.
Lado a Lado apresenta algum mérito ao
contar com um número bem maior que o habitual de personagens negros, compondo
perfis mais variados. No entanto, ainda peca por mostrar os brancos como salvadores
d@s negr@s. A Isabel de Camila Pitanga tem características muito interessantes:
é honesta, decidida, forte e cativante. Porém, só conseguiu se estabilizar na
vida graças ao beneplácito de mulheres brancas: Madame Besançon (Beatriz
Segall), Diva (Maria Padilha), Laura (Marjorie Estiano), Madame Dorleac (Maria
Fernanda Cândido). É claro que o gênero as une, mas o recorte de raça e de
classe tem especificidades que não podem de forma alguma ser desconsideradas. Temos
que ter em mente que todos os avanços que os movimentos sociais tiveram, seja
de mulheres, de negros, etc., foram conseguidos graças a muita luta e pressão
junto à sociedade, e não devido à generosidade de algum representante bonzinho
dos grupos dominantes.

Mesmo com
suas qualidades, Lado a Lado ainda é
um avanço muito tímido rumo ao combate à depreciação d@s negr@s na mídia,
sobretudo porque a Globo insiste em manter no ar personagens como Adelaide de Zorra Total, cuja única função é
ridicularizar de uma só tacada vários grupos socialmente discriminados: é
pobre, mulher e negra.